A Tradição Socrática do Catolicismo


A VERDADE NÃO PERECE

"Instead of renewal, the contemporary Church needs to be awakened to her traditions"

"Ao contrário de uma renovação,a Igreja contemporânea precisa ser despertada por suas tradições"

Lucas G. Weastman - https://thesocraticcatholic.com


   A Morte de Sócrates (La Mort de Socrate),1787, Jacques-Louis David. Metropolitan Museum - NY

A Religio Vera; Ekklesia Una

Um estudo do GETENP - Grupo de Estudos em Teologia Natural e Política

 [1]*


O nome religião, do latim religio – é entendido como o respeito pelo que é sagrado, assim como uma procura por uma ligação entre os humanos e seus deuses, forças ou espíritos que regem suas visões do mundo. Sua etimologia continua obscura, de acordo com Cicero, tem origem no vocábulo lego, que combinado com re (coisa), poderia ser interpretado como “escolha,” “passar adiante o caminho” ou “considerar com zêlo” (De natura deorum; 2.8). Especialistas, Tom como Harpur e Joseph Campbell atualmente, acreditam que deriva de religare, reunir o que estava separado. Quando me reporto a uma Religio Vera, faço referência aquilo que é construído sobre uma Teologia Natural, continuando o trabalho a uma longa tradição no estudo da relação entre os humanos, a natureza que os cercam e aquilo que eles consideram divino e sagrado. Contudo, deuses regionais, que privilegiam um povo sobre o outro não podem ser o Justo, assim não cultuaríamos o Deus Verdadeiro.

O tratado seminal da teologia ocidental, Antiquitatum rerum divinarum et humanarum, hoje perdido, é de autoria de Marcos Terêncio Varro (116 – 27 a.C.), um notável filósofo, teólogo, poeta, orador e general romano. Marco trabalhou com Caio Júlio César em diversos empreendimentos, apesar de varro ter lutado ao lado de Pompeu contra o próprio César (Cf. Suetônio,1998). Varro, depois de anistiado, foi incumbido por César de gerenciar, organizar e ampliar todas as bibliotecas de Roma, reconhecido, ao longo da história, como um dos maiores intelectuais de seu tempo.
Varro identifica três formas de teologia: Política, Natural e Mítica. No primeiro caso, devemos recordar que, para Aristóteles, Política é sinônimo de Ética. Destarte, a primeira teologia fala a respeito da moral e da lei. Ora, esta fica bem clara no conjunto denominado velho testamento, no qual podemos identificar em sua tripla função, também um código de leis para os hebreus. Por essa razão, um cristão não deve se preocupar com as leis do antigo testamento, por exemplo, as prescrições para o trato com escravos e não creio que seja necessário fornecer razões para ignorar leis desta natureza. Como o século XX nos apresentou novas formas de teocracias[2], a teologia política é um assunto que deve ser discutido e estudado. Dessa forma, fica claro a razão pela qual são imbuídos os clérigos do poder judiciário em diversos momentos e lugares.

A teologia natural, no entender de Varro, aborda questões cosmológicas, as quais são essências em um sistema religioso sério e, naturalmente, tratado por filósofos da natureza, os cientistas do passado. Temas como causa, mudança, origem, destino e necessidade são extremamente importantes para construir uma doutrina que se sustente diante da mais tímida análise de sua veracidade ou coerência. A teologia política se ocupa de guiar as ações das pessoas e, dessa forma, trata-se de algo de suma importância para qualquer fase da vida. Novamente, é importante lembrar que Política, para Aristóteles, é sinônimo de Ética (Cf. 1991), todos somos políticos, na democracia elegemos representantes de nossa vontade. A teologia mítica, por sua vez, pertence ao domínio dos poetas, os responsáveis por levar ao grande público, iniciado, jovem ou inculto a doutrina professada. Nos mitos encontramos, em metáforas e parábolas, o que há de mais importante e o que pode ser facilmente assimilado em um sistema religioso. Com efeito, os aspectos míticos têm tamanha importância e protagonismo para nossa vida (mesmo para o do ateu) que não podem ser subestimados. Assim, as escrituras devem ser sacralizadas e, sobretudo, lidas e interpretadas por cada um que se identifique com elas. Mitos, por sua própria natureza, não podem são falsos ou verdadeiros, contudo, são descrições poéticas que, quando escritos sob a inspiração e motivação honesta, encerram grande universalidade, com maior ou menor clareza.

A terminologia de Varro foi adotada não só por sua tradição filosófica, mas também pelos teólogos que deram forma as principais ramificações do monoteísmo. A sua autoridade como teólogo foi e continua reconhecida amplamente, inclusive pelo outrora Pontífice Máximo da Igreja Católica, agora na condição de Romano Pontífice Emérito, Bento XVI ou, como conhecido antes de subir ao trono de Roma, Joseph Aloisius Ratzinger. De acordo com V.S., o bispo de Hipona dá suporte[3] a essa tríplice divisão da teologia (Cf. Ratzinger, 2000).

Varro compartilhava da imagem estoica de Deus e do mundo; ele definia Deus como animam motu ac ratione mundum gubernantem [a alma que sustenta o mundo através do movimento e da razão]; em outras palavras a alma do mundo que os gregos chamavam de cosmos: hunc ipsum mundum esse deum. Esta alma do mundo, entretanto, não é adorada. Ela não é o objeto da religio. Em outras palavras, verdade e religião, não pertencem à ordem da res, da realidade mesma, mas a ordem de mores – moral. Não foram os deuses que criaram o Estado, mas o Estado que instituiu os deuses cuja veneração é essencial para a ordem do Estado e para o correto comportamento de seus cidadãos. Essencialmente, a religião é um fenômeno político[4] (Ratzinger, 2000).

Ratzinger que, como fica claro acima, entende a religião como um fenômeno político, desfruta de grande credibilidade acadêmica no estudo de temas como teologia, filosofia e direito canônico, em especial, na obra Agostinho de Hipona (354-430 d.C.).  De acordo com ele, Agostinho, sem hesitação alguma, via o cristianismo com a sua origem na Teologia Natural greco-latina e não, como muitos pensam, a partir da tradição hebraica. Contudo, não é somente em Agostinho que Ratzinger (2000) vê essa identidade entre a doutrina cristã e a filosofia helênica. De acordo com V.S., até no discurso de Paulo de Tarso, no Aeropagus, que apresenta a religio vera, o cristianismo tem sua origem na filosofia natural. Nossa semelhança com o criador é interna, a razão é a dádiva do criador para o ser humano, com ela podemos compreender as leis do Criador
É através da virtude dos mártires que nos convencemos de que podemos nesses homens ascéticos depositar nossa fé. Destarte, para o mais importante dos teólogos dos primeiros séculos do cristianismo, a é uma forma de conhecimento em relação à Razão contida no universo, obra do Supremo Geômetra. Com efeito, de acordo com Agostinho, a razão pode e deve transpor criticamente o conhecimento obtido pelo depósito da fé.

Por isso é que todo o amor de um espírito que se entrega ao estudo, isto é, de um espírito que quer saber o que não sabe, não é amor de uma coisa que não sabe, mas de uma que sabe por causa da qual deseja saber aquilo que não sabe.
É clara, com efeito, a afirmação do Apóstolo, que diz que o homem interior se renova no conhecimento de Deus segundo a imagem daquele que o criou[5] , dizendo ainda noutro passo: embora o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, renova-se dia após dia (X. 1. 3).

Em sua linha de raciocínio, Agostinho reforça esta concepção, em especial, quando afirma que ninguém pode amar aquilo que desconhece.

Eis uma imagem da Trindade: a própria mente e o seu conhecimento, que é sua descendência e sua palavra, de si gerada, e, como terceiro, o amor, e estas três coisas são uma só coisa e uma só substância. E a descendência não é inferior, na medida em que a mente se conhece na proporção da sua grandeza, nem o amor é inferior, na medida em que a mente se ama na proporção em que se conhece e na proporção da sua grandeza (Agostinho, De Trinitate, IX. 12. 18).

Contudo, para entendermos Agostinho devemos estar familiarizados com a doutrina exposta pelos apóstolos, ou seja, as versões que conhecemos do pensamento de Jesus de Nazaré.

Já que muitos empreenderam compor uma narrativa dos factos que entre nós se consumaram, como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que foste instruído (Lucas 1: 1-4).

Se dirigindo a Teófilo, em meu humilde juízo (seja ele produto de um mundo materialista ou fruto do sagrado dom de Deus, a razão), o “Médico Amado” e apóstolo, Lucas de Antióquia (ou Evangelista) foi aquele que reconstrói de forma mais bem-intencionada, honesta e teologicamente aprimorada a doutrina cristã. Lucas faz isso através de uma narrativa que se inicia com o nascimento e termina com a crucificação

[...] expulsou a todos do templo, as ovelhas bem como os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio (João 2:15-16).
A postura moral de Jesus é notória quando se refere aos que se apegam às coisas materiais, em especial, o dinheiro. A única ocasião em que Jesus foi tomado pela ira, acontece na porta do templo de Jerusalém, entre os cambistas. Na descrição de Lucas, Jesus praticou a medicina gratuitamente. Ora, nos dias de hoje, os “verdadeiros” milagres são frutos da ciência e das virtudes. Contudo, é algo lastimável o fato de que nossos médicos façam um juramento[6] pagão, para que, assim, não precisem cumpri-lo. A sociedade, afastada da luz do conhecimento, não entende que o charitas, o amor cristão pela humanidade, move o médico para o tratamento de todos, sem distinção de riqueza, credo ou origem étnica.

Encontraremos a virtude da simplicidade entre a miséria e o luxo, assim, este compromisso moral não exige nenhuma pena dolorosa, apenas sabedoria. Para aquele que seguem a doutrina, as recompensas se desfrutam ainda em vida. Quando alguém não conhece teologia e se lança a ensinar uma doutrina que, além de falsa é danosa à sociedade, lendo a Bíblia pela força do medo do diabo e do inferno e não por amor a Deus e suas criaturas, causa um grande mal a si e aos outros, condenando muitos que não entendem o dever de usar a própria razão, infringindo a vontade do Criador. Um bom exemplo do compromisso que deve haver entre os homens de política, os de ciência e entre aqueles que cuidam do espírito é o apreço pela verdade e pela razão contidas nas opiniões honestas, mesmo que se revele incompleta ou ainda inacabada.

Referências:

AGOSTINHO de Hipona (S/D). De Libero Arbitrio. Livros IX – XIII [trad. Ir. Nair de Assis Oliveira] Paulus: São Paulo,1995.
AGOSTINHO de Hipona (S/D). De Trinitate. (Texto publicado na LUSOSOFIA.NET com a benévola e graciosa autorização dos Tradutores e da Irmã Eliete Duarte, da Paulinas Editora, onde os XV livros da obra, em edição bilíngue [latim/português], estão publicados na íntegra) Prior Velho: Paulinas Editora, 2007.
ARÍSTOCLES de Atenas [PLATÃO] (S/D). Parmenides. Project Gutenberg Março, 1999. [http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/gu001687.pdf]
ARISTÓTELES de Estagira (S/D). “Ética a Nicômaco” In: PESSANHA, José Américo M.  Aristóteles: Ética a Nicômaco / Poética (4ª Ed.). São Paulo: Nova Cultural, 1991.
RATZINGER, Joseph (2000) “The Victory of the Christian Logos over Relativism: The Truth of Christianity” In: “Christianity. The Victory of Intelligence over the World of Religions” in 30 Days, n. 1, 2000, pp. 33-44 [www.disf.org].
SUETÔNIO, Caio (S/D). A Vida dos Doze Césares. Ediouro Publicações (Trad. Sady-Garibaldi): Rio de Janeiro, 1988.





[1] Trechos extraídos de Baiardi, 2016. Resultados de pesquisa com o apoio do Grupo de Estudos em Teologia Natural e Política.
[2] E.g.: Irã e Israel.
[3] Em seu Civitas Dei (VIII, 9 apud Ratzinger, 2000).
[5] Colossenses 3: 10
[6] O Juramento de Hipócrates era levado a sério no passado e hoje ignorado. Não há compromisso com um juramento desses. Um médico deveria fazer um juramento civil. Não há caridade, só mercado. O tão precioso e santo exercício da arte da medicina foi transformado em mercadoria. Não há salvação para os que negam o socorro.

Xenófanes e o Imago Dei

Em que medida somos feitos semelhantes a Deus?



Xenófanes de Cólofon (570-475 a.C.) foi um filósofo, teólogo e poeta de origem jônica (atual Anatólia, na Turquia). Dedicou parte de sua vida a crítica sobre o conteúdo teológico contido nos cantos aos deuses do panteão grego. Esta teologia mitológica era um forte elemento para a identidade das civilizações helênicas e, antes de poetas como Homero e Hesíodo a salvaguardarem através da escrita, eram cantadas em versos que facilitavam a sua memorização. Contudo, as crises sofridas no período alertaram boa parte da inteligentsia helênica, a qual passou a entender que tal religião produzia efeitos deletérios, pois não colaborava com o projeto de progresso social que almejavam, pois celebravam o encesto, a rapina e a mentira, dentre outras imposturas e vícios.  Outro problema claro que enfrentavam era a contínua atmosfera de incerteza produzida por guerras e disputas entre famílias da aristocracia. Homens como Platão, Parmênides, Sócrates, e Xenófanes se destacaram entre os teólogos mais eminentes deste período.


Estes filósofos acreditavam que as leis da natureza tinham sido estabelecidas por uma Razão de ordem superior, assim, um só Supremo arquiteto poderia oferecer a estabilidade e o equilíbrio ao mundo. Contudo, aos olhos destes e de muitos outros filósofos a razão tem sua morada na alma (mesmo para os materialistas desta época) e as paixões (ira, preguiça, medo, volúpia) no corpo. Para os ascetas, aqueles que aspiram por elevação do seu espírito, a nossa existência material é breve, ao passo que a espiritual é longa. No cristianismo tradicional, na ocasião da morte, nosso corpo fica para trás, e só então obteremos a revelação. Será que o nosso corpo tão instável e propenso a corrupção é onde reside, a imagem, ou a Ideia, de Deus? Forma e Ideia (eidos) são sinônimos para os gregos e isso fica claro na concepção platônica da criação dos homens e dos outros animais.

Xenófanes destaca-se dentre toda a tradição pelo combate ao antropomorfismo divino. De acordo com Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), Xenófanes teria sugerido que se os animais tivessem o dom da arte, representariam os seus deuses em forma de animais, ou seja, à sua própria forma. Esta doutrina está presente, em muitos ramos do monoteísmo, na recusa de representar artisticamente o Divino, pois Ele não é o que vemos, mas muito mais. João Calvino (1509-1564 d.C.), o teólogo que apresentou as doutrinas mais claras da reforma protestante, estava consciente de que a Imago Dei do Homem reside na alma e abrange tudo que distingue o Homem dos animais.


A Divindade pregada por Xenófanes em nada se assemelha aos deuses homéricos sempre a perambular pelo mundo sob o império das paixões, ou seja, longe da razão. Só existiria, então, um deus único, que é eterno, não-gerado, estável e puro. Parmênides denominaria esta divindade como o Uno. Esta visão abre as portas para o surgimento de um humanismo grego, preocupado em unir os homens e não os dividir em contendas sangrentas ou seitas obscuras.

Doctor Filos

O ecumenismo é uma prática, ou doutrina, que procura pela Unidade. O termo ecumênico provém da palavra grega οἰκουμένη, que significa mundo habitado. Em um sentido mais restrito, emprega-se o termo para os esforços em favor da unidade entre as diferentes correntes do cristianismo, assim como do patriarcalismo abraâmico ou, em um sentido lato, pode designar a busca de um denominador comum entre as doutrinas religiosas. Normalmente, estes denominadores são: Amor, União e Verdade. O ecumenismo oferece elementos para conhecermos melhor o que é o Sagrado, nos afastando do ódio, da discórdia e do erro.